Page 120 - Da Terra
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MILHO REI                                                                                                                                                                      QUERIDO PÃO,


                          Quando eu era pequeno, o meu pai contava-me histórias de meninos sem sapatos, de calções                                                                                                          olho-te no prato e penso no que em teu corpo se esconde que possa

                          rotos, que aprendiam na escola nomes de rios, saudações à pátria, modos de curvar a espinha à                                                                                                     vir a tornar-se meu. Que crimes jus ficam a tua condenação? São
                          fotografia de um velho pendurado defronte ao Senhor deus pai crucificado. Eram meninos                                                                                                              tantas  as  preocupações  e  tão  desesperada  a  impotência  de  as

                          cheios de sonhos alimentados a pão de milho, couves com feijão e azeitonas. De quando em vez,                                                                                                     resolver que, às tantas, parece não haver problema algum, talvez
                          para amedrontar febres, uma canja de galinha e copos de água pura, do poço, benzida. Quem                                                                                                         apenas  minudências  com  que  distraímos  as  horas  de  tédio
                           nha alguma coisa, escondia-a. Nas noites quentes de Verão, pela fresca, traziam-se maçarocas                                                                                                     preenchidas  pela  banda  sonora  dos  telejornais  e  os  efeitos

                          das searas para as eiras, aproveitava-se a palha para os colchões. Por vezes, aparecia uma                                                                                                        fantás cos  das  redes  onde  realizamos  a  nossa  medíocre
                          maçaroca preta. Era milho rei. Sorte de quem a apanhasse, corria o grupo aos beijos e abraços.                                                                                                    cinematografia.  Quantos  de  nós  olharão  para     interrogando-se
                          Pendurava-se  a  maçaroca  em  casa  para  trazer  sorte.  Ficava  espantado  a  ouvir  meu  pai                                                                                                  sobre  quanto  de  nós  por  detrás  de     se  esconde?  De  manhã

                          lamentando-se do infortúnio, das noites passadas no curral, embrulhado entre uma burra e uma                                                                                                      chamamos-te fresco por nos chegares quente, regalamos o olfacto
                          cabra, aproveitando o calor dos bichos para enganar a geada que caía desse céu explicado na                                                                                                       com o teu perfume, e é tudo. Assim são as contradições humanas.
                          terra por catequistas mais sábios do que Deus. Meu pai começou a trabalhar inda não  nha onze                                                                                                     Quero que saibas, e por isso te escrevo, que para mim não és poema:

                          anos, com um primeiro par de sapatos sem solas em honra da freguesia. Mal sabia que passados                                                                                                      és  pão.  E  por  seres  pão  és  mais  do  que  poema.  Nenhuma  fome
                          sete anos, com uma filha nos braços, uma casa a meio de ser erguida, teria de par r para a                                                                                                         de espírito se ex ngue sem antes saciar a fome do corpo. Por isso

                          saudade,  onde  em  esperança  caiou  paredes,  ladrilhou  salas,  espalhou  tectos  por  cima  do                                                                                                olho-te e vejo o suor de quem te vendeu e de quem antes de te
                          pensamento, fazendo sombra à revolta proibida. Trouxe raivas no regresso, traumas, inimigos                                                                                                       vender teve que te cozer e de quem te cozendo te amassou e benzeu
                          nunca vistos, terroristas de tanga a viverem em palhotas mais ignóbeis do que currais, inimigos                                                                                                   e de quem te benzendo pediu aos santos que crescesses até nós. É
                          que sabiam tanto da vida como a vida sabia das aldeias naquele tempo parado entre o nada e                                                                                                        esta a lei do pão: ontem transforma-se em hoje fundindo-se num

                          coisa nenhuma. Uma sardinha para três? Ali só chegavam as sardas dos bufos, desconfianças,                                                                                                         amanhã que se tornará ontem. Estamos sempre no ontem, tu e nós, e
                          cismas, receios nunca ouvidos na telefonia até ao dia em que se cantou: há bulha na capital. Meu                                                                                                  dentro  dessa  lei  defini va  a  criança  desbulha  o  trigo  e  as  vacas

                          pai foi para a rua, prometendo contar-me um dia a sua história como quem conta ao futuro o que                                                                                                    andam à roda e por cima do trilho a criança chama pelo vento norte
                          resta de um passado recalcado e esquecido. Isto era para ser um poema, fica assim, como uma                                                                                                        para que a palha seja limpa e o vento sopra e o grão fica e a palha voa.
                          espécie de prosa em verso es rado na preguiceira dos meus dias. Pode ser que um dia conte                                                                                                         Antes de ser homem o homem foi criança, antes de ser pão foste

                          à minha filha a história de seus avós, pode ser que um dia ela me conte a sua, pode até ser que a                                                                                                  trigo e antes de tudo isto tanto tu como nós fomos ambos semente.
                          sua não venha a ser muito diferente daquela que eu ouvia, espantado, meu pai contar.                                                                                                              Olho-te no prato e vejo-me, não há diferença, apenas reflexo.




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